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Comunicação e os Media
os casos notificados oficialmente já ultrapassavam a barreira
dos 100 e tinha "certeza absoluta de que há muitos mais,
pelo menos mais 30%". A subnotificação era atribuída à bu-
rocracia da declaração obrigatória. Na era da globalização e
da sociedade digital continuava, até junho do ano passado, a
ser feita por carta.
O sistema para notificar autoridades sobre as doenças de de-
claração obrigatória modernizou-se, entretanto, e vai ser in-
teressante olhar para os números, supostamente agora mais
próximos da realidade. O que irão mostrar?
A verdade é que muitos portugueses continuam a acreditar
mais na sorte do que na picada de um mosquito capaz de os
infetar com uma doença que mata. Médicos e o próprio di-
retor-geral da Saúde, Francisco George, salientavam, então,
que a consulta do viajante, quase sempre com lista de espera,
é procurada sobretudo para cumprir a vacinação internacional
exigida por vários países. E mesmo aqueles que se preveniam
acabavam 'por baixar a guarda' ao fim de alguns meses de per-
manência nos locais para onde emigravam.
Tenho outro amigo que há anos se divide entre Portugal e o
norte de Angola (um mês e meio lá, um mês em casa) e nada
faz contra o mosquito. Em brincadeira, tem por hábito dizer
que já 'está vacinado'. Comportamento que assegura ser par-
tilhado por muitos outros portugueses que por lá trabalham.
Escapar ileso ou manifestar uma das formas ligeiras da in-
feção continua a ser a casuística dominante, no entanto, há
exceções. Elisabete foi uma delas.A mensagem de alerta cer-
tamente seria mais eficaz se nas consultas do viajante exis-
tissem, por exemplo, quadros com nomes e idades daqueles
cujas vidas foram roubadas num instante, por uma picada
que quase nem se sente. A familiaridade gerada poderia aju-
dar os profissionais de saúde a despertar a atenção do viajan-
te ou emigrante, nos casos em que só ali entrou à procura de
um registo no boletim amarelo.
Teria Elisabete sobrevivido se tivesse optado por entrar num
avião rumo a Lisboa assim que percebeu que não estava bem?
Quem sabe. Talvez, se tivesse encontrado na Urgência, do
Serviço Nacional de Saúde, um médico sensibilizado para
aquela probabilidade de diagnóstico, pois o 'efeito ébola' ain-
da não se fazia sentir.
O Diretor do Serviço de Infeciologia do Centro Hospitalar e
Universitário de Coimbra, Saraiva da Cunha, foi perentório
quando, no ano passado, lhe telefonei a pedir um contributo
para o artigo: "A formação médica dá prioridade à patologia
que existe no país, mas a crise apanhou-nos de surpresa e há
150 mil portugueses só em Angola, os mesmos do que em
Coimbra ou em Setúbal, e não podemos ter médicos que
não os sabem tratar." Ter médicos pouco despertos para co-
locar a malária na lista de diagnósticos possíveis até parece
estar fora do contexto, por acontecer no mesmo país que
tem cientistas com trabalhos premiados na área da Malária.
Conhecer de perto alguém que morreu de malária no século
XXI é estranho e tendemos a pensar que connosco teria sido
diferente. Há um filme, de 2013, norte-americano que conta
a história de uma mulher bem-sucedida, muito ocupada, que
decide ir de férias prolongadas com o filho adolescente para
África. É infetado e morre. A mãe regressa aos EUA com
os restos mortais do filho e não consegue voltar à rotina.
Regressa sozinha e cruza-se com outra mulher, inglesa, que
trabalhava como voluntária depois de também ter perdido o
filho, professor em Moçambique. "Unidas pela Esperança",
tentam alertar para a doença, para angariação de verbas...
Recordo-me de pensar que era um filme com uma mensagem
muito forte, mas que o argumento pecava por algum desfasa-
mento da realidade. Um miúdo abastado, norte-americano,
morre de malária na primeira vez que vai a África? Estava lon-
ge de saber que iria ter uma vítima 'à porta de casa'.
Nota-se agora que a malária é mais vezes um tema, inclusive
nos meios de comunicação social generalistas nacionais e in-
ternacionais.A entrada na Europa, por exemplo, de doenças
que estavam habitualmente confinadas a destinos mais po-
bres terá certamente ajudado a 'acordar' consciências.
Este mês, por exemplo, foi notícia a redução de 60% na
mortalidade atribuída à malária desde 2000. Por outras pa-
lavras, 6,2 milhões de vidas poupadas, das quais seis milhões
de crianças com menos de cinco anos. Segundo o relatório
publicado pela OMS e pela Unicef, há, ainda assim, mais de
três mil milhões de pessoas, quase metade da população no
mundo, em risco.
As terapêuticas existentes são altamente eficazes, garantem
os especialistas. Importa que estejam acessíveis quando e
onde são necessárias.