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História
Segundo vários autores a lepra
é a doença cuja descrição
individualizada é a mais an-
tiga. Porém, confundem-se frequentemente
duas qualidades de lepra: uma, que podemos
definir como a do paradigma do pária da
sociedade; e a outra, a doença de causa infe-
ciosa. É desta última que iremos tratar, embora
existam ligações históricas entre as duas, que em
muito influenciaram a carga psicológica e social
que a lepra infeciosa ainda carrega.
A primeira lepra, a dos párias sociais, é referida
no Levítico (c. 1000 a.C.) como a
tsara’ath
, des-
crevendo o indivíduo que, não se comportando
dentro das regras da comunidade merece a segre-
gação e o isolamento, requerendo vigilância e a in-
tervenção dum sacerdote e implicando até um ritual
de purificação para que não se contamine o coletivo. Erros
na tradução e interpretação dos textos bíblicos levaram à
confusão entre esta lepra, a
tsara’ath
e a lepra infeciosa, con-
fusão que gerou implicações que se prolongaram no decur-
so dos tempos e estigmatizaram até aos nossos dias a lepra
transmitida pela micobactéria de Hansen, muito mais do que
qualquer outra doença infeciosa.
Nos textos biblicos encontramos umas 68 referências às le-
pras: 55 no Antigo Testamento, que são relativas à
tsara’ath
,
e 13 no Novo Testamento (Gillen, 2007), sendo que destas
últimas várias serão da lepra hanseniana, embora frequen-
temente misturada com doenças que hoje são reconhecida-
mente diferentes, como a elefantíase, a psoríase, dermatoses,
doenças venéreas, varíola, etc. Podemos assim considerar a
lepra hanseniana referenciada em vários escritos antigos:
Nos Evangelhos onde são conhecidos os episódios de Job
1
e
da cura dos 10 leprosos; Nos escritos védicos de Sushruta,
na Índia, cerca de 600 a.C., ou no
Regveda Samhitata
, tam-
bém na Índia e mais antigo, que identificam a lepra como
Kushta,
mas misturam-na também com outras doenças; Na
China, o livro de medicina
Nei Ching
assinala-a igualmente
cerca 2600 a.C., assim como textos da dinastia Chou (séc.
VI a.C.) a propósito de Pai Miu, um leproso que foi discí-
pulo de Confúcio (551-479 a.C.) e, embora mais recente,
ficou também célebre o médico chinês Sun Simiao (581-682
d.C.), pelos seus conhecimentos sobre a lepra
.
Testes comparativos de genomas sugerem que o agente in-
fecioso da lepra, a micobactéria, viajou em períodos muito
remotos desde a África oriental ou desde o sul da Ásia até às
portas da Europa, na Ásia Menor. Pelos estudos de datação
de ADN com o radiocarbono a evidência mais antiga de que
dispomos encontrou-se num túmulo em Jerusalém (1-50
d.C.), contemporâneo da vida de Cristo.
A Antiga Medicina, de carácter religioso, con-
siderou as deformidades dos leprosos
como manifestações visíveis do peca-
do, sinais de uma alma impura, des-
truída pelos erros da transgressão
sexual e do pecado. Incapaz de fazer
um diagnóstico correto, a resposta
fez-se pela segregação dos doentes,
indesejáveis ao convívio social. Na
Europa cristã, o isolamento dos lepro-
sos foi a doutrina indicada por vá-
rios Concílios, com mais relevância
para o de Latrão III, no século XII
(1179) e o de Lyon (1245): Impu-
ros, os doentes deviam ser separa-
dos da comunidade, despojados dos
seus bens e considerados "mortos
para o mundo". Nalguns casos fo-
ram mesmo forçados a participar
em macabras cerimónias fúnebres de
humilhação e penitência, que ajudavam
a purificar a alma. Eram depois abando-
nados à sua sorte, em geral obrigados a
usarem hábito próprio que os identificasse e a fazerem-se
anunciar por matracas ou sinetas, sempre que se aproximas-
sem dos caminhos públicos ou de agregados populacionais,
na busca de esmolas ou de comida para a sua subsistência.
Contudo, para este isolamento compulsivo, não podemos
excluir também uma vaga interpretação da contagiosidade,
ainda que empírica. Nesse sentido apontam, além de alguns
escritos, as localizações das leprosarias, que deveriam ins-
talar-se de preferência em locais elevados, bem arejados e
ventosos.
Também, aqui e ali, se ensaiaram algumas terapêuticas como
a carne de serpente cozida com funcho, na medicina grega
antiga, ou o dente de elefante na Idade Média, ou ainda o
creosoto
2
, os arsenicais e os sais de mercúrio (Cox e Dover,
2007), também os banhos de águas termais, mais recente-
mente.
Em simultâneo, a interpretação religiosa da doença e as suas
conotações com os episódios bíblicos deram lugar a mani-
festações de caridade e de misericórdia por parte do cle-
ro, dos nobres e das comunidades, que encontravam assim
ocasiões para expri-
mirem a compaixão
e imitarem os passos
de Cristo. O Concílio
de Orleans, em 549,
impunha aos bispos
a obrigação de assis-
tirem aos leprosos e
outros exemplos bem
Fig. 1:
Facies de leproso
EgitoTúmulo deAmenofis III
(1390-1350 a.C.)
Fig. 2:
Figura em terracota
alusiva à lepra (África).
Colecção JLDoria.
Fig. 3:
Leproso com matra-
ca. Ilustração medieval