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A n a i s d o I HM T
obra "Fernão Capelo Gaivota", recorda-nos que "
A maior parte das
gaivotas não se querem incomodar a aprender mais que os rudimentos do
voo, como ir da costa à comida e voltar. Para a maior parte das gaivotas,
o que importa não é saber voar, mas comer. Para esta gaivota, no entanto,
o importante não era comer,mas voar"
E, à guisa de desfecho, realça:
"Vê mais longe a gaivota que voa mais alto".
Voar, voar mais e mais
alto tem sido pois o lema que tenazmente perseguimos.Aconche-
gados e crentes destes pensamentos, desbravamos dificuldades, e
passamos a residir, mesmo que temporária e quixotescamente,
nessa visão sonhada de um futuro que se julga possível".
E são estes voos mais altos o apanágio do Instituto de Higiene e
Medicina Tropical. E é com este esforço permanente e conse-
quente que, consequentemente, se vem preparando e organizan-
do o Instituto de Higiene e MedicinaTropical.Mas, porque se voa
mais alto e, por essa razão se vê mais longe, têm todos, docen-
tes, técnicos e alunos cada vez mais responsabilidades. Por isso,
permitam-me citar o grandemédico emestre canadense,William
Osler, que afirmava:
"A melhor preparação para o amanhã é fazer o
trabalho de hoje soberbamente bem."
Este é o desafio.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Os Trópicos, antes, agora e, infelizmente, por muitos mais anos
futuros, foram, são e serão uma zona desprivilegiada no que tan-
ge ao desenvolvimento socioeconómico equitativo das suas po-
pulações. Na verdade, aí se verificam os desequilíbrios macros
entre Homem e Ambiente e, para particularizarmos, também
entre saúde-doença. Aí se verifica que os Determinantes Sociais
da Saúde actuam muito mais no sentido negativo que positivo e,
impiedosamente, causam a iniquidade gravosa das situações que
diariamente observamos de pobreza com o seu arrastado cortejo
de iliteracia, fome,miséria, descriminação, estigma, dependência,
inexistência ou enfraquecimento de autonomia, carência ou fra-
queza de responsabilidades, atropelos à dignidade.
Repito. Infelizmente, os Trópicos, são ainda uma zona da huma-
nidade muito sofrida mas uma zona que começa agora, esperan-
çosamente, aguardando o proclamado bom relacionamento entre
Homens que pretendem agora ser "mais iguais" ou, dito de outra
forma, do invocado melhor relacionamento Norte-Sul.
Nos finais do séculoXIXe princípios doXX,as grandesmigrações
da Europa transferiam não somente pessoas mas ideias.A globa-
lização inicia os seus primeiros passos. Os meios de comunicação
social (livros, jornais, revistas, televisão, rádio, telefones, internet)
e a recente explosão destas, assim como a sua distribuição por
todos os continentes fazem envolver aproximadamente a totalida-
de da população mundial, podendo esta, hoje, dela usufruir quase
instantaneamente. Contudo, a formação das pretendidas agendas
globais, que se esperam, é ainda muito influenciada pelo modelo
da relação Norte-Sul.
Nesta busca de agendas globais das diversas sociedades civis, em
ambos os lados, a comunidade científica é presumivelmente a
estrutura que mais traduz o ideal destas sociedades globais por
utilizarem uma comunicação mais objectiva e mais
autónoma.To-
davia,a diferença de países mais ricos emais pobres,persiste.Mas,
se as agendas nacionais devem ter em conta as apostas da globali-
zação económica e cultural, a globalização não poderá substituir a
enunciação de desígnios nacionais.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Como tantos outros, formei-me com a vida, procurando sorver
dos meus mestres (professores, líderes, gentes de saber) o conhe-
cimento e as experiências que servissem, mesmo que modesta-
mente, para dar uma contribuição à dignidade do ser humano.
Tem sido hábito meu declarar que, sendo eu um médico mais
dedicado à problemática da saúde coletiva do que propriamente
à doença do indivíduo, sou um "especialista de generalidades".
Mas, se este facto me concede uma visão horizontal mais global e
abrangente, por outro lado retira-me a profundidade vertical que
nos ajuda a mergulhar na verdadeira especificidade dos fenóme-
nos que pretendemos perscrutar e melhor compreender.
Também incansavelmente tenho acreditado, sem perder de vista
o individual, que a ação coletiva é sempre mais abrangente, mais
robusta,mais produtiva e, umdia,mais consolidada.Por isso acre-
dito que, como afirmouWilliamOrler, o apelidado "pai da medi-
cina moderna: "
Em ciência, o crédito vai para o homem que convence o
mundo de uma ideia,não para aquele que a teve primeiro
".
Quando, por vicissitudes da vida, me foi dada a responsabilidade
de, em1983, criar e dirigir o Instituto Nacional de Saúde emMo-
çambique, de entre vários contatos e solicitações, tive o privilégio
de ser indiretamente abordado pelo eminente e saudoso homem
de ciência e saber,que foi o Professor Francisco JoséCambournac.
Deixem-me então contar este episódio, não muito feliz, que se
passou com o Professor Cambournac, Diretor que também foi
destamagna casa,o
IHMT.Eu,inexperiente,jovem,ingénuo,des-
conhecedor das complexas redes sociais e científicas de então, na
altura inebriado e orgulhoso pela nossa Independência Nacional,
em 1975, recebo por volta do ano de 1984, já em plenas funções
como Diretor do Instituto Nacional de Saúde em Moçambique,
uma proposta do Professor Cambournac. Disponibilizava ele o
Instituto de Higiene e Medicina Tropical convidando uma equi-
pa de moçambicanos para se deslocarem a Lisboa para formação.
Respondi: "Professor,mas nós é que temos osTrópicos.Aguarda-
mos pois a vossa chegada e experiência da qual, aliás carecemos".
Indispôs-se o Professor e ficaram muito tensas as nossas relações.
Mais tarde, em Fevereiro de 1989, tive o grato ensejo de o poder
conhecer pessoalmente e com ele lidar de mais perto. Então, de
viva voz, tive a grande oportunidade de ter uma conversa sobre a
minha contraposta de então sobre osTrópicos.Até hoje não sei di-
zer se fui eu queme expliquei bem, se o Professor que o entendeu
diferentemente. Ficamos verdadeiramente amigos. Aí assegurei-
-me da grandeza do Professor, como homem extraordinário de
ciência, de gestão, de vida, de exemplo.
A ciência arma-nos com materiais, instrumentos e argamassas
que nos permitem contribuir para edificar uma vida mais sã,mais
equitativa, mais justa, mais digna. O extraordinário matemático,
físico e filósofo da ciência do fim do século XIX, princípio do sé-
culo XX, Poincaré alertava: "
Assim como as casas são feitas de pedras,
a ciência é feita de factos.Mas uma pilha de pedras não é uma casa e uma
colecção de factos não é,necessariamente,ciência
".